Erradicar a fome e garantir o acesso de todos, em particular das pessoas em situação de vulnerabilidade social, incluindo crianças e idosos, a alimentos seguros, culturalmente adequados, saudáveis e suficientes durante todo o ano. Esse foi o objetivo que o Brasil e demais países pactuaram com a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio do “Objetivo Desenvolvimento Sustentável número 2”, da lista que o órgão elencou para a construção de um mundo melhor até o ano de 2030.
O caminho para dar fim à fome e à insegurança alimentar em nosso país é uma luta diária e passa por uma série de desafios. Dados divulgados em 2020 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por meio da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), sugerem que, infelizmente, o Brasil tem cedido espaço nessa batalha. E a pandemia da Covid-19 pode ser um agravante ainda maior, fazendo com que a reentrada no “Mapa da Fome” — índice composto pelos países que contém mais de 5% da população em condições severas de fome — seja um destino inevitável para uma nação que, há apenas 7 anos, comemorava melhoras nos resultados e a saída do mesmo índice.
Especialistas apontam, porém, que o país tem as condições e as ferramentas necessárias para alterar esse cenário. O trabalho em programas como a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN) e Política Nacional de Promoção da Saúde do Sistema Único de Saúde, que se desdobram em ações como o “Plano de Alimentação Escolar”, o “Guia Alimentar Para a População Brasileira”, “Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf)”, entre outros, dá evidências concretas do quanto ainda pode ser feito.
Dados alarmantes
Cerca de 37% dos domicílios do Brasil sofrem com algum grau de insegurança alimentar, atingindo um total de mais de 84 milhões de cidadãos. A insegurança alimentar grave alcançou mais de três milhões de lares. Os números revelados pela POF em 2020 são duros quando se pensa em um país que tem o “Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável” em sua Constituição.
Para o representante das Organizações Unidas para Agricultura e a Alimentação (FAO) no Brasil, Rafael Zavala, apesar dos graves índices, o país não é o único a sofrer com o aumento da fome. Ele aponta que, segundo relatório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) e da própria FAO, a previsão para o final de 2020 era de que o número de pessoas em condições de extrema pobreza na América Latina e no Caribe chegasse a 83,4 milhões, um aumento significativo nos níveis de fome do continente. Com a perpetuação da pandemia da Covid-19, a previsão é que em 2021 esses dados ainda não melhorem.
O representante da FAO destaca a adversidade estrutural socioeconômica como um elemento que deixa a população mais vulnerável: “O problema da fome é global. E, em situações de crise como a que estamos vivendo com a Covid-19, o impacto na segurança alimentar é muito maior. Isso acontece por uma forte queda na renda das famílias e pelo desemprego, o que, por consequência, diminui o poder de compra e impacta não só no acesso, mas na qualidade dos alimentos consumidos.”
Pesquisa de Orçamentos Familiares
(POF 2017/2018) do IBGE

10,3 milhões de pessoas
viviam com privação severa de
alimentos em alguns momentos

A segurança alimentar nacional
caiu para 63,3%, o patamar mais
baixo historicamente

84,9 milhões de pessoas
estavam com algum grau de
insegurança alimentar

Metade das crianças menores
de 5 anos viviam com algum
grau de insegurança alimentar

Mais da metade dos
domicílios com insegurança alimentar
grave eram chefiados por mulheres
Demonstra a desigualdade do acesso ao trabalho e renda entre homens e mulheres.

A insegurança
alimentar grave
prevalece na zona rural
Mudanças no Consumo de alimentos
em relação à POF 2008-2009:
Aumento do consumo de
(em relação à POF 2008-2009):
Diminuição do consumo de
(em relação à POF 2008-2009):
Aumento do consumo de
(em relação à POF 2008-2009):
Aumento no consumo
de alimentos processados
e ultraprocessados
Diminuição do consumo de
(em relação à POF 2008-2009):
Diminuição no consumo
de alimentos in natura ou
minimamente processados
Aumento no consumo
de alimentos processados
e ultraprocessados
Diminuição no consumo
de alimentos in natura ou
minimamente processados
Qual é a solução para este desafio relacionado à fome? Rafael enfatiza a inexistência de atalhos ou medidas simples. “É necessário que governos, setor privado e organizações da sociedade civil atuem de forma integrada para tomar medidas em larga escala. Acompanhar os resultados e as variações nesses índices também é fundamental. Por isso, a FAO, mesmo durante a pandemia, contribui com subsídios para a manutenção do ‘Censo de Segurança Alimentar e Nutricional (CensoSAN)’, que fornece dados sobre a fome e a segurança alimentar no país”, informa Zavala.

Alicerçados no Guia Alimentar
Todos os pilares elencados pela ONU para 2020-2021 (sistemas alimentares sustentáveis para fornecer dietas saudáveis para todas as pessoas; mão a mão para alcançar sociedades rurais prósperas e inclusivas; e agricultura sustentável e resiliente) já estão descritos no “Guia Alimentar para a População Brasileira”.
A primeira edição do documento foi lançada em 2006 e, a segunda, em 2014. O Guia foi elaborado pelo Ministério da Saúde junto com o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde Pública da Universidade de São Paulo (Nupens – USP) e com apoio da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). O professor do Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e integrante do Nupens, Rafael Claro, participou diretamente do processo de publicação da versão vigente do Guia.
Ele conta que o processo de revisão e publicação desta nova edição ocorreu naturalmente por dois fatores: atualização de recomendações e melhorias para uma linguagem mais acessível a todos(as).
Apesar de tentativas recentes de desconstrução, o Guia Alimentar vem se firmando como uma das maiores ferramentas no combate à fome. Seu conteúdo está alicerçado na priorização de alimentos das categorias in natura e minimamente processados e orientando o cuidado no consumo dos alimentos ultraprocessados.

O Guia Alimentar foi elaborado para se aproximar ao máximo da realidade do cidadão brasileiro, como enfatiza a pesquisadora do Nupens, da Universidade de São Paulo (USP), a professora Fernanda Rauber. Na época de formulação do documento, ela compunha a Coordenação de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde e participou de todos os processos.
Fernanda considera que um dos pontos de destaque do Guia e uma das inovações em relação à edição anterior é ter orientações que foram elaboradas com base nos dados da POF, fazendo com que as recomendações fossem baseadas nos padrões alimentares que já são praticados por uma parcela da população brasileira. Confira a entrevista com a pesquisadora da USP:
Mesmo sendo uma referência, existem percalços sobre o documento. Em setembro de 2020, uma “Nota Técnica” encaminhada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) ao Ministério da Saúde colocava em cheque as recomendações do Guia. Para o professor da UFMG, Rafael Claro, o problema não está na sugestão de uma revisão do documento, que é um processo normal e contínuo, mas, sim, na falta de evidências científicas para embasar essas críticas: “Temos mais de 500 trabalhos mostrando que as recomendações do Guia e a classificação nova, utilizada como alicerce das orientações, estão relacionadas não só à melhora na saúde, mas também na redução do ganho excessivo de peso, das doenças cardiovasculares, certos tipos de câncer, hipertensão… Percebemos que ‘o grosso’ das queixas vêm justamente de setores que são economicamente comprometidos de forma negativa com as recomendações do Guia, como a indústria dos refrigerantes, doces, de alimentos ultraprocessados… Tendo ciência disso, nós não podemos dar valor real para essas reclamações”.

Nutricionista na alimentação escolar: agente de mudança
De acordo com o representante da FAO no Brasil, Rafael Zavala, se apoiar nas estruturas já construídas, como o Bolsa Família, o Pronaf e o PNAE, é o que pode dar força para o país ser mais eficiente no combate à fome e à insegurança alimentar.
E, à frente de algumas ações, está o(a) Nutricionista, vital no enfrentamento das problemáticas ligadas à fome. Seja na idealização de estratégias ou na linha de frente, a Nutrição exerce um papel fundamental que vai muito além do arcabouço técnico e científico: passa pela sensibilização, acolhimento e escuta.
Nutricionistas de todo o país, com a pandemia da Covid-19, viram crescer a responsabilidade em zelar e cuidar da saúde, por meio de uma alimentação adequada. E no caso da segurança alimentar, para vários profissionais isso significou trabalhar com a escassez, já que muitos dos projetos proporcionados pelas políticas públicas de Alimentação e Nutrição foram prejudicados.
É o caso da Nutricionista especialista em Nutrição Pediátrica e Escolar do município de Abaeté, no centro-oeste de Minas, Glaucia Andrade (CRN–9 3005). Antes da pandemia, ela realizava um extenso trabalho de educação alimentar nas escolas, promovendo atividades lúdicas. A educação das famílias era levada em conta e a profissional também ministrava palestras na rede privada. “Eu acredito muito na transformação gerada pela Educação Alimentar e Nutricional e na conscientização dos alunos sobre uma alimentação adequada e saudável. Eu sigo as diretrizes do Guia Alimentar e reforço desde a creche até a Educação para Jovens e Adultos: ‘desembale menos, descasque mais’”, destaca a profissional, que trabalha na rede pública de ensino há 12 anos.
Porém, com a Covid-19, o foco mudou. Em razão do fechamento das escolas, a prioridade do trabalho passou a ser a elaboração e entrega de cestas de alimentos para as famílias. Até o momento desta entrevista (realizada em outubro de 2020), já foram mais de 500 cestas entregues.
A Nutricionista responsável técnica pelo PNAE na cidade de Nepomuceno, localizada no sul do estado, Elizabeth Ferreira da Silva (CRN–9 1686), também teve seu trabalho alterado em virtude da pandemia. Liderando o processo de entrega dos Kits de Alimentação no município, elaborados com a verba da Alimentação Escolar, a profissional acompanha desde a aquisição dos alimentos até o recebimento destes produtos pelo aluno atendido na rede de ensino.
Elizabeth já tem quase 20 anos de carreira e passou por diversas áreas, como atendimento clínico, ensino e o próprio trabalho em PNAE em outras cidades. Desde 2019 em Nepomuceno, ela enxerga que o papel do(a) Nutricionista nesta área envolve muito planejamento e o único alvo de atenção sempre é atender o aluno da melhor forma possível.
A profissional revela que a Agricultura Familiar tem sido um dos grandes parceiros nessa empreitada: “Adquirir estes produtos é uma grande estratégia de segurança alimentar. Além de ofertarmos alimentos de qualidade para os alunos, fomentamos a participação dos agricultores e da economia local. E as famílias têm ficado satisfeitas, pois veem a preocupação e o cuidado com a qualidade de vida de seus filhos mesmo frente às dificuldades da pandemia.”
Já para a Nutricionista responsável técnica pelo PNAE no município de Heliodora, região sul do estado, Isabela Carvalho (CRN–9 13535), a saída para contornar os obstáculos da pandemia e continuar oferecendo serviços de Nutrição de excelência e promovendo a segurança alimentar da população foi a inovação, por meio da criação do “Projeto Proteger”.
A iniciativa tem dois pilares principais: a distribuição de kits e a realização de atividades que trabalhem a educação alimentar e nutricional, a fim de estimular as crianças e seus responsáveis a realizarem práticas saudáveis de alimentação em seus domicílios. As famílias são orientadas por meio de vídeos, áudios, imagens e textos em grupos de Whatsapp criados por representantes docentes de cada turma.
Isabela enxerga que o combate à insegurança alimentar tem sido realizado mesmo com os desafios das atuais circunstâncias: “No combate à fome, o PNAE certamente é um programa que auxilia de forma ativa, visto que muitas crianças realizam somente a refeição que é fornecida no ambiente escolar. E a entrega dos kits vem para possibilitar àqueles que não têm condições o acesso a alimentos que muitas vezes não estão presentes no ambiente domiciliar.”

A Revista Digital do CRN-9 não poderia deixar de ouvir um personagem importantíssimo para a Nutrição e o combate à fome no país. Confira a seguir a entrevista completa com o Nutricionista Élido Bonomo (CRN-9 0230):
“Não há possibilidade de combate à fome e à insegurança alimentar sem a presença da sociedade”

Élido Bonomo acredita que a crise de segurança alimentar no país é grave, mas que a Nutrição tem as ferramentas necessárias para a promoção da saúde e combate à fome.
Frente a dados alarmantes, que colocam em xeque a possibilidade do Brasil superar de vez a problemática da fome e da segurança alimentar, como deve se portar o governo, a sociedade e os profissionais da Nutrição?
Para Élido Bonomo, a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) em 2018 pelo governo foi um duro golpe, pois foi perdido o principal órgão de integração nacional das políticas públicas. Além disso, para ele, a pandemia trouxe novos desafios que podem trazer sequelas graves para as condições de acesso ao alimento pela população.
Ainda assim, o profissional considera que o trabalho deve seguir para garantir que o “Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável” seja cumprido em todo o país. Nutricionistas e sociedade organizada devem se unir para fazer as políticas públicas eficazes, respeitando o Guia Alimentar, e trazendo novas perspectivas que abranjam o acesso sustentável aos alimentos e oposição aos ultraprocessados.
Confira a entrevista na íntegra:
Como a pandemia de COVID-19 afeta o Brasil em relação à fome e à insegurança alimentar?
Mesmo quando o Brasil saiu do “Mapa da Fome”, tínhamos cerca de 3 milhões de pessoas que estavam desassistidas e, portanto, ainda em condição de miséria. Estávamos fora do “Mapa” porque, para esse índice, é levado em conta um percentual dos organismos internacionais.
Com a chegada da Covid-19, em 2020, houve o aumento do desemprego, que acarreta em diminuição da renda e do acesso à alimentação. Somado a isso, os equipamentos públicos, como o Programa de Alimentação Escolar, Bancos de Alimentos, Cozinhas Comunitárias, Restaurantes Populares, em sua maioria fecharam suas portas e até hoje muitos deles ainda estão assim. Até que surgissem e se consolidassem políticas alternativas, como as dos Kit Alimentação e Vale Merenda, foram necessárias negociações com órgãos como o Ministério Público e Assembleia Legislativa. Com isso, demorou-se muito para a população ter acesso ao alimento via resposta do Poder Público e, ainda assim, nem sempre com uma alimentação correspondente à que se tinha no período anterior à pandemia.
Portanto, o que nós temos de legado ainda no decorrer da pandemia levou as pessoas a terem menos renda e também os equipamentos públicos a diminuírem a oferta de alimento direto. Os dados são muito graves. A última POF, realizada em 2017/2018 e divulgada em 2020, mostrou que nos últimos anos o índice de insegurança alimentar aumentou muito, batendo 85 milhões de pessoas com algum grau de insegurança alimentar, somando cerca de 37% da população. Esse número em 2013 estava na casa dos 22%.
Você acredita que as políticas públicas ou estratégias adotadas no Brasil em relação à alimentação têm se mostrado eficazes para as questões relacionadas à fome?
Acredito que não são eficazes, principalmente por dois motivos: o primeiro são os próprios dados que mostram isso. Nós estamos de novo no “Mapa da Fome”, embora os dados oficiais não digam isso, mas é o que as pesquisas têm mostrado. E isso foi antes do período da pandemia. Hoje, se tivéssemos dados oficiais, os números com certeza seriam alarmantes em relação à segurança alimentar, bem como em relação à fome.
E o segundo componente que compromete a eficácia é uma política que não “ouve” a sociedade. Em 2018, o governo baixou uma Medida Provisória que depois foi transformada em Lei e que ocasionou a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), que era o órgão que equilibrava as demandas da sociedade dos mais diversos estratos. Este era o espaço no qual as pessoas levavam essas demandas e buscavam o diálogo com o governo, onde se estabelece qual ministério é responsável pelo programa ou ação, como se desenrolará a parte financeira, quanto de dinheiro será investido nos programas de acesso aos alimentos, de qualificação profissional, de assistência técnica e extensão rural, pesquisa e acesso a água e até a regularização fundiária.
Isso dificulta enormemente para que tenhamos bons resultados e também para se levantar métricas, porque nós não temos a sociedade participando. Atualmente, esse papel ficou a cargo dos estados e dos municípios, porque os conselhos estaduais e municipais de segurança alimentar e nutricional não foram extintos, mas não são todos os municípios que os têm instalados. Dessa forma, o tema é tratado em outros conselhos congêneres, como de Assistência Social, de Saúde, Educação, Desenvolvimento Rural Sustentável, Conselho de Alimentação Escolar, que também têm tentado tratar desse assunto.
Então, nós não estamos indo bem nas estratégias adotadas pelo governo, porque parte das políticas e das ações devem ser integradas nacionalmente e, sem o Consea Nacional, isso não ocorre.
Qual a importância do Guia Alimentar para a população brasileira?
O Guia chama a atenção para a valorização do alimento que é saudável, que é regional da cultura alimentar, ele aponta a importância de priorizar alimentos in natura ou minimamente processados, chama atenção para evitar os alimentos processados e ultraprocessados, que sabidamente têm excesso de açúcar, de sódio, pouca fibras, minerais e vitaminas. Então, ele faz um contraponto em relação ao padrão de consumo que o brasileiro tem hoje e é muito parecido com o dos americanos em décadas passadas. O Guia estimula a compra da Agricultura Familiar, o consumo de alimentos sem agrotóxicos, estimula a transição para a agroecologia, o circuito curto de produção. É muito importante a população ter acesso às informações deste documento e incorporar esses saberes, discutir coletivamente nos espaços públicos da saúde e da educação, nas universidades e nas escolas.
Com a diversidade que nós temos, não podemos seguir um modelo supermercadista, em que transnacionais impõem um hábito alimentar monótono homogeneizado para todo mundo.
Um aspecto notável é que esses pilares podem gerar conflito com a indústria alimentícia. Apesar de não ser contra o alimento industrializado, o Guia mostra que tem que haver um regramento sobre esse consumo e isso inevitavelmente vai gerar um enfrentamento. Mas ele é fundamental para dar uma “chacoalhada” na nossa sociedade, falar para ela a direção que devemos ir em termos de hábitos alimentares e como vai ser o ritmo desse consumo. Com a diversidade que nós temos, não podemos viver de apenas oito ou dez variedades de produtos alimentícios, seguir um modelo supermercadista em que transnacionais impõem um hábito alimentar monótono homogeneizado para todo mundo. E uma das coisas que o Guia faz de mais importante é estimular esse debate da variedade e qualidade dos alimentos que o brasileiro coloca no prato.
Quais os caminhos podem ser adotados para a garantia de uma alimentação adequada e saudável para todos brasileiros?
Conseguir que o Guia Alimentar fosse seguido pelos órgãos públicos e também pelos indivíduos já seria um caminho importante. Mas nós temos que ter acesso ao alimento. Para isso, a primeira fonte é se a pessoa tem terra e produz. Se ela não a tem, o acesso é pela renda: tem que ter emprego. E se não tem emprego e nem tem a terra, em última instância essa responsabilidade cabe ao estado, que deve prover, promover e respeitar o Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável.
Nessa equação, ainda devem ser inseridos mecanismos de educação alimentar, para que quem consiga o acesso aos alimentos, seja pela terra ou pela renda, possa fazer as melhores escolhas. O próprio Guia Alimentar é um ótimo exemplo de um desses mecanismos. A nova Lei de Diretrizes de Base da Educação também é um caminho, pois em seu texto ela sinaliza que todas as escolas brasileiras, no seu projeto pedagógico, precisam ter um componente sobre educação alimentar e nutricional. Outra possibilidade é o estímulo para transitar das grandes propriedades de monocultura para alimentações mais diversas, focando no acesso às feiras populares.
Qual é o papel do Nutricionista perante a fome e a insegurança alimentar?
A fome e a insegurança alimentar são problemas que atingem a ordem social, cultural, política, econômica… Ou seja, um conjunto de elementos e componentes estruturais. Esses aspectos profundos não são de imediata responsabilidade do profissional da Nutrição, mas não tenhamos dúvida: é fundamental que o Nutricionista possa estar envolvido nesses espaços, como colocado na Resolução CFN nº 600, que mostra muito bem como a atuação dos profissionais pode se relacionar com as políticas públicas.
O Nutricionista deve ter um olhar crítico nos espaços onde está inserido para buscar soluções, apoiado na multidisciplinaridade, compreendendo o fenômeno e as situações que estão levando à fome em um determinado território.
O profissional da Nutrição tem a capacidade de colaborar para que a população tenha uma melhor condição de alimentação, que tenha melhoria na segurança alimentar e nutricional em qualquer área de atuação, seja na Nutrição esportiva, na clínica, pode ser na saúde coletiva, na área de educação, de ensino, na alimentação coletiva. O Nutricionista deve ter um olhar crítico nos espaços onde está inserido para buscar soluções, apoiado na multidisciplinaridade, compreendendo o fenômeno e as situações que estão levando à fome em um determinado território, região ou comunidade. Assim, o profissional pode avaliar possíveis relações de “causa-efeito” e somar na busca por alternativas. Esse é um processo que pode ocorrer individualmente, de colaborar para criar uma condição de alimentação melhor no seu consultório ou unidade de saúde.
Já a condição de fome, a “fome social”, não se resolve do ponto de vista individual. A condição de insegurança alimentar, se estiver relacionada à falta de acesso a alimentos em quantidade e qualidade, se estiver relacionada à falta de renda, são questões tratadas coletivamente, com políticas públicas. E o Nutricionista tem toda a capacidade e importância de se fazer presente nesses espaços, seja participando de seminários, encontros, conferências, sendo parte de conselhos e órgãos, ajudando a elaborar e a formular iniciativas, levando o conhecimento específico que esse profissional tem e pode colaborar em muito para a superação desses dois flagelos.
E a sociedade? Como deve agir em relação à fome e à insegurança alimentar?
A sociedade tem um papel fundamental, Nutricionistas mais uma vez inclusos. Não se faz política pública sem a participação da sociedade, porque ela, com a sua diversidade e a sua compreensão territorial de grupos populacionais distintos, é que vai apresentar a situação de segurança alimentar e de fome do país.
A sociedade tem o papel de carregar essas demandas e reivindicar formas de se buscar coletivamente soluções e alternativas, para que se façam as mudanças em âmbito individual, familiar ou de grupos pequenos, mas também atinja as tomadas de decisão que dependem do Estado, da política pública. Isso pode ocorrer no Legislativo, por meio de emendas, de processos de definição de orçamento, ou no Executivo, com a execução do orçamento via programas e ações reais. É a sociedade que enxerga, que sente e convive com o problema para levar às autoridades.
A melhor maneira para isso é a sociedade se organizar por meio de conselhos e associações.
E onde não há Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional, deve se apresentar a outros conselhos congêneres. Além disso, a sociedade também cumpre o papel de suma importância de monitoramento desses resultados, verificando quando e se há a necessidade de modificações na direção e no rumo das ações.
A presença da sociedade civil organizada é fundamental e imperativo para o sucesso das políticas e iniciativas na área.